A NOITE QUE NÃO FINDA
É de quebrar o coração e de alimentar profusamente a indignação. É um daqueles filmes cuja importância histórica é tão gigantesca que beira o incalculável. E que ajuda a nos fazer entender porque o Estado de Israel – além de ter assassinado mais de 100 jornalistas de várias entidades de comunicação (em diálogo com Breno Altman, fui informado que isto supera o número total de profissionais da comunicação mortos na cobertura de toda a 2ª Guerra Mundial) – também decretou o banimento da Al Jazeera em seu território.
A guerra israelense é também contra a verdade. E o silenciamento é também contra tudo aquilo que possa produzir empatia e compaixão pelo sofrimento daqueles a quem está sendo imposta esta gigantesca Catástrofe, a mal nomeada Nakba 2.0. Digo mal nomeada pois dizer “2.0” parece afirmar que estamos diante de um segundo episódio de limpeza étnica e deslocamento forçado massivo que espelha aquele de 1948. Mas não se tratam de dois episódios, mas de um processo histórico contínuo de despossessão e expropriação imposta aos árabes pelo empreendimento colonial sionista, violento e abusador há mais de 75 anos. Na verdade a própria Nakba, desde a fundação do empreendimento colonial sionista com chancela da ONU, é tão infindável quanto cada uma das noites enfrentadas pelas pessoas de Gaza desde o 7 de Outubro.
Em uma obra-prima do documentário contemporâneo, o filme “The Night Won’t End” (2024, 78 min), uma produção da Al Jazeera English com direção de Kavitha Chekuru, comove com a estória de 3 famílias devastadas pelos quase 9 meses da ofensiva sionista contra os mais de 2 milhões de habitantes do enclave sitiado. Dezenas de milhares de pessoas já o acessaram no YouTube (https://www.youtube.com/watch?v=ECFpW5zoFXA) – em seus 7 primeiros dias on-line, ele atingiu 150.000 visualizações. E o Democracy Now!, uma das mais louváveis entidades da comunicação nos EUA, produziu um excelente programa sobre o doc em que entrevista dois de seus realizadores (https://youtu.be/GvRcb4mTBQ4?si=HdfwS63HK_TYCERg).
A obscena cumplicidade do governo Biden com o morticínio está aqui amplamente documentado, de maneira cronológica e didática, de modo que os historiadores da geopolítica têm neste filme um farto manancial para acusar o decadente Império Estadunidense por sua parceria criminosa com os crimes de guerra e de limpeza étnica que estamos acompanhando estarrecidos nos últimos meses.
Tenho refletido muito sobre o cinema distópico nos últimos anos e o último período fortaleceu em mim a impressão de que o campo do documentário torna-se cada vez mais dominado pela distopia. Há certas cenas de “The Night Won’t End” que podem facilmente ser descritas como “pós-apocalípticas” ou outro termo similar, usualmente reservado para o sci-fi de fim-de-mundo. Bem-vindos à distopia do real.
Nas últimas semanas, estamos promovendo o ciclo de cinedebates “Do Rio Ao Mar, Palestina Livre Já!” no Ponto de Cultura A Casa de Vidro em Goiânia. Algumas obras-primas do cinema palestino realizadas por cineastas geniais como Elia Suleiman (O Que Resta do Tempo, Deve Ser O Paraíso) e Hany Abu Assad (O Salão de Huda, Paradise Now, Omar…) revelam, através da ficção, várias facetas distópicas da vida sob a ocupação e o apartheid. Porém, as cenas de documentários – como o impactante “Gaza Luta Pela Liberdade” de Abby Martin e desta produção sobre a noite que não finda realizada pela Fault Lines Al Jazeera – superam em teor distópico e chocante as ficcionalizações promovidas por estes admiráveis artistas como Suleiman e Hany.
Destaco, em “The Night Won’t End”, a sessão dedicada a Hind Hajab, criança de 6 anos, assassinada pelas Forças Armadas de Israel dentro de um carro em que ficou encurralada junto com os corpos de familiares. Nenhum ficcionalizador de distopias chegou aos pés de narrar um conto tão tétrico como o faz aqui o filme.
A UNICEF já está extenuada de gritar que Gaza tornou-se um cemitério de crianças. A Save The Children e outras ONGs já se cansaram de publicar reports sobre os mais de 15.000 óbitos de menores de idade produzidos no maior infanticídio do século 21. A maioria dos “cidadãos-de-bem” que conheço não se chocam com isto e parecem não se importar com uma pilha de crianças mortas que caso empilhada subiria aos céus – maravilhosos defensores de Deus, da Família e dos Bons Costumes que passam pano para um regime de extrema-direita capaz de atrocidades que nunca vimos em nosso tempo de vida.
Este filme dá carne e voz a Hind Hajab e sua família de maneira a nos fulminar com uma dolorosa piedade por uma vida perdida; o que nos permite sentir melhor o que significa isto multiplicado por milhares. Às vezes uma estatística deixa-nos frios como um picolé – e somos capazes de bocejar, sentados na poltrona a muitos milhares de km de distância, enquanto lemos que quase 40.000 seres humanos foram massacrados por Israel em Gaza. Porém, a estória de Hind, o depoimento de sua mãe, a voz da criança em seus últimos momentos da Terra, é capaz de nos arrancar as lágrimas que a estatística foi incapaz de deflagrar.
Hind tornou-se um ícone da época depois da vasta cobertura midiática que seu caso suscitou. A tragicidade atingiu neste caso um cume pois o resgate fracassado da menina, empreendido por uma ambulância que levou horas para conseguir permissão dos israelenses, foi bombardeada quando estava próxima do carro e completamente incinerada com dois paramédicos dentro. Hind tornou-se uma memorável agonia que expressa toda a perversidade do sionismo. Os universitários que ocuparam a Universidade de Columbia rebatizaram um dos prédios acadêmicos como Hind’s Hall. Na esteira disto, Macklemore realizou uma belíssima canção – testemunho do quanto o Movimento Hip Hop ainda é baluarte contra a opressão e voz dos silenciados – e viralizou com sua “HIndi’s Hall” (mais de 3 milhões de views só no YouTube).
A voz de Hind Hajab, agonizando aos 6 anos de idade, conversando com o Crescente Vermelho de Ramallah, por horas e horas pedindo por resgate dentro de um carro todo alvejado e cheio de cadáveres frescos, só para depois ser massacrada pela IDF de Israel, é o tipo de estória real distópica que ficará aqui para assombrar-nos. E que nos leva a refletir sobre a resistência armada palestina contra o poder opressor sionista: se este se mostra capaz de ações tão desumanas e imorais, como seria plausível confrontá-lo com argumentos morais e jurídicos? Se o Estado de Israel é crudelíssimo e não tem escrúpulos em seu morticínio, como os palestinos conquistariam seu direito à independência e à auto-determinação a não ser através de uma insurreição?
Ao fim do filme, lembrei-de uma de minhas heroínas, uma das escritoras mais potentes desta geração, voz de todos os párias, defensora audaz de todos os injustiçados, que usa a potência de sua palavra para retirar do opróbrio aqueles que são tratados como a escória do mundo e os intocáveis da terra: Arundhati Roy ensina-nos que não existem de fato os sem voz, mas sim os silenciados e os preferencialmente não escutados. Ensina que aqueles que tem a coragem de enxergar o que se passa não podem depois des-enxergar – nem calar sobre o que viram.
Esta obra-prima do cinema documental contemporâneo, à altura das urgências do tenso agora, é uma oportunidade a mais para a sensibilização dos cidadãos do mundo. A opção moral pela pretensa neutralidade, ou a escolha pela alienação e pela desinformação, é mesmo isto: uma opção, cujo valor ético será julgado. O cinema documental da Al Jazeera está aí, disponível, de graça, e fechar os olhos a ele tem o peso terrível de pálpebras que se trancam para que o sofrimento do outro não possa entrar.
Quem recusa esta oportunidade ímpar de informar-se e sensibilizar-se só ajuda ao opressor com a desculpa de estar se protegendo de conteúdos ansiogênicos. Não há ficar em cima do muro simultâneo com a postura de pureza moral quando uma carnificina destas dimensões ocorre em nosso planeta. Os que escolhem não ver serão cobrados pela opção lastimável pelo silêncio e pela cegueira voluntária nesta época insana onde Israel e seus parceiros ocidentais praticam um genocídio ao vivo em nossos ecrãs enquanto muitos fingem que nada está acontecendo.
“The trouble is that once you see it, you can’t unsee it. And once you’ve seen it, keeping quiet, saying nothing, becomes as political an act as speaking out. There’s no innocence. Either way, you’re accountable.” ― Arundhati Roy
Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro – 26 de Junho.
No dia da publicação deste artigo, as Forças Armadas de Israel (IDF) já haviam assassinado mais de 37.700 pessoas, incluindo mais de 15.000 crianças e adolescentes.
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Leia também: Over 20,000 children buried, trapped, detained, lost amid Gaza war: huge numbers trapped beneath rubble, buried in unmarked graves, detained by Israel, says Save the Children.
Publicado em: 24/06/24
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro Ponto de Cultura e Centro de Mídia